sábado, 8 de novembro de 2008

Conto do Telefone - Anderson Volpato.

Não é possível saber ao certo quantas imagens se obscurecem e se esclarecem momentos antes que uma pessoa adormeça. Acredito que os intervalos entre o sono e a consciência constituem um amplo portal para a passagem de nossos medos, fúrias, prazeres e, ao mesmo tempo, um descanso para o peso de nossas preocupações. São nevoeiros e abismos percorridos em minutos constituídos de outras propriedades. Foi no meio desta atmosfera embaçada, agradável e perigosa que um som familiar me despertou um dia desses.

O som pontiagudo e estilhaçado parecia dar braçadas no meio da obscuridade do meu estágio de entorpecimento. Parecia dar braçadas na escuridão do quarto, como um náufrago desesperado por ajuda.

Aos poucos fui retomando a consciência e percebi que o ruído ganhava forma e passou então a significar algo para mim: era o telefone! Levantei-me. A cabeça parecia pesada, pois quando esperamos algo avidamente, o cérebro parece só processar uma mesma informação, e o círculo vicioso torna-se matéria, pesa e fica estampado no rosto. A contradição presente em uma ansiedade sem esperança nos dá uma feição cadavérica, oblíqüa e rarefeita.

Minha cama fica não muito distante do aparelho. Mesmo assim, muitas vezes penso não chegar a tempo para atendê-lo. O telefone pode parar de tocar, penso. A pessoa do outro lado da linha pode imaginar que eu já esteja dormindo e desistir.

Às vezes, a saída do sono é como uma espécie de ressurreição. Ficamos um pouco parecidos a Lázaro saindo de suas ataduras e retornando progressivamente à vida. Ressuscito e desço da beliche com a esperança estampada nos vincos que o travesseiro fez no meu rosto.

O dia foi um pouco cansativo. Muitas coisas acontecem quando temos um campo perceptivo aberto e uma memória traiçoeira e sarcástica. Dizem que não existe vida interior e nem mesmo homem interior. Contudo, como explicar os duelos internos de quem se lembra da própria história e dos vultos do passado? Estamos em um teatro imaginário o tempo todo. Até mesmo diálogos solitários podem ser tecidos por horas em uma nova estrutura espaço/temporal. Na verdade, foram as falas flutuantes deste teatro que encheram as horas do meu dia antes da ligação.

Tendo descido do meu leito suspenso, meus pés quentes tocam o chão frio. Nunca encontro os chinelos. Meu corpo estranha a familiar posição de estar de pé. O incômodo que ele sente fisicamente é relativo ao incômodo que eu lhe proporciono mentalmente: a ansiedade em ouvir o irritante som do telefone. Imagino, cheio de certezas, o que há de latente neste som…

- Vamos lá! digo eu, vamos resolver logo o provável equívoco causado há alguns dias. Sinto um certo frescor curioso em ter esperanças tão simples no meio do grande ato da ressurreição do sono. Será apenas uma simples conversa!

À parte estas questões preliminares e claustrofóbicas, finalmente chego ao aparelho. Ainda tento tatear a parede na busca infrutífera pelo interruptor. Nem mesmo a luz mais forte seria capaz de clarear os torvelinhos das minhas sensações.

Fico frente a frente com o telefone. Minha mão hesita. Parece um bolo de dedos trêmulos e pálidos; parece um guardanapo embrulhado por mãos aflitas depois de uma refeição devorada sem apetite.

Enquanto isso, o som estridente, agora reconhecido enquanto estímulo opressor, continua. Minha esperança de que o aparelho pare de tocar e me deixe voltar para a cama é quase nula. Com certeza atenderei a ligação. É óbvio! Tenho algo muito importante a dizer! Sempre temos!

Lembro-me que certos momentos de indecisão como este já tiveram grande papel em minha nulidade social, profissional, espiritual etc, etc. Chega! Algo tão simples! Basta pegar o fone e ouvir a esperada interjeição ser pronunciada pela esperada voz: Alô!?...

Respiro fundo, verifico involuntariamente a escuridão do longo corredor ao meu lado e retiro o fone do gancho. Então, o som que penetra em meu ouvido esquerdo, ainda zumbindo pelos efeitos do sono, pode ser resumido graficamente em reticências esfumaçadas, porém, imponentes: Tum…! Tum…! Tum…! Tum…!

4 comentários:

Anônimo disse...

Todos sabemos quem estava do outro lado da linha... D.

Anônimo disse...

Obrigado pela divulgação, Téo.
Escrevi este conto para cauterizar uma ausência:

"Não me reconheço mais. O que me tornava igual aos outros foi destruído. Eu era como os outros, talvez, com muitos defeitos...os meus e os do meu mundo. Você me tirou a ordem natural das coisas. E, enquanto você estava perto, eu não tinha percebido. Agora entendo que você vai embora. E perder você me conscientizou da minha diferença. O que será de mim? O futuro será como viver perto de um outro "eu"...Que não tem nada a ver comigo. Devo chegar ao fundo dessa diferença...que você me revelou...e que é a minha íntima e angustiante natureza? Mas, se não quero...tudo isso não vai me colocar contra tudo e contra todos?". Pier Paolo Pasolini - TEOREMA

Anônimo disse...

Quanta angústia e ansiedade me causou esse conto!

Beijo,
Ana

Anônimo disse...

Oi, Ana! Sou angustiado e ansioso!
O autor do conto!